Economia

B3 começa a fazer registro de duplicatas

Há duas semanas, a B3 começou a oferecer o serviço de registro de duplicatas. Com essa iniciativa, a bolsa de São Paulo, que domina os segmentos de registros de títulos, valores mobiliários, derivativos, cotas de fundos, entre outros ativos, está de olho num mercado que, depois de regulamentado pelo Banco Central, poderá negociar trilhões de reais. A movimentação da B3 incomodou a única empresa que atualmente oferece esse serviço, a Cerc (Central de Recebíveis).

"Começamos a oferecer esse produto porque identificamos forte demanda de nossos clientes pelo serviço", diz Fabio Zenaro, diretor de produtos de balcão, commodities e novos negócios da B3.

As duplicatas são notas de operações realizadas entre as grandes empresas e seus fornecedores. Como exemplo, um supermercado que compra frutas de um pequeno produtor. Após a entrega, a rede supermercadista afirma ao fornecedor que fará o pagamento da mercadoria em dois meses e se compromete por escrito com isso - esse papel, uma espécie de nota, é a duplicata. No final do ano passado, a Lei 13.775/18 autorizou a duplicata eletrônica no Brasil. Com isso, esse documento deixará de ser cartular para ser digitalizado. Dessa forma, esse título, que nasce fora do sistema financeiro via um negócio entre duas partes, poderá ser depositado numa registradora e inserido no sistema.

Todas as operações que garantem as condições do papel, como a encomenda e a entrega da mercadoria, utilizando o exemplo acima, estarão na tela da câmara registradora, consolidadas e reconhecidas pelas partes envolvidas na negociação. Dessa forma, o uso desse recebível como garantia para outras operações no mercado ficará mais seguro. Como exemplo, o produtor de frutas poderia usar a duplicata como fiança para um empréstimo com uma instituição financeira; ou entregálo numa operação de antecipação de recebíveis.

O registro na câmara serve para comprovar a unicidade da duplicata, uma vez que como um simples papel, ela não fica registrada em um sistema, e isso enfraquece a sua qualidade como garantia. Um fornecedor de má-fé poderia, numa fraude, usar a mesma nota para antecipar os recursos com várias instituições. Para que a duplicata eletrônica possa de fato existir, ainda falta o Banco Central definir a sua regulamentação. Não há data prevista para isso acontecer e o BC, procurado, não deu entrevista.

"Por conta da demanda dos nossos clientes, estamos nos antecipando e, quando a regulação vier, faremos os ajustes que forem necessário ao serviço, a partir das exigências do BC", diz Zenaro, da B3.

A Cerc também se antecipou e oferece o serviço de registro de duplicatas há um ano - antes mesmo da aprovação da lei que criou a duplicata eletrônica, em 2018. A Cerc surgiu em 2017 para atender a outra lei, desse mesmo ano, que fixou que gravames sobre recebíveis deveriam ser feitos em registradoras. Como não havia ninguém especializado em gravames de duplicatas, a Cerc se posicionou neste segmento. E, por essa expertise com esse papel, é a única a possuir um sistema de acompanhamento de duplicatas homologado pelo Banco Central.

"Somos favoráveis à competição entre registradoras. A nossa preocupação é com a uniformidade dos critérios para a aceitação do registro dessas duplicatas", afirma Fernando Fontes, sócio-fundador da Cerc. "Se não houver práticas uniformes entre as registradoras, isso pode gerar insegurança para o mercado", diz. Na avaliação dele, a Cerc foi cobrada pelo BC e estabeleceu um sistema de verificação e acompanhamento específico desses papéis que a B3 hoje não possui. "A bolsa tem a expertise de registro de papéis que já nascem no sistema financeiro, o que não é o caso das duplicatas", diz Fontes. Além disso, ele destaca que a interoperabilidade entre os sistemas das registradoras é esperado apenas para 2020. E, se hoje uma não enxerga o sistema da outra, a unicidade desses papéis fica comprometida. "Duas registradoras, com critérios de aceitação diferentes e sem a interoperabilidade, pode significar um caminho para novas fraudes", afirma Fontes.

O sócio da Cerc afirma que isso pode gerar insegurança no mercado, uma vez que já houve problemas com esses papéis comprados por fundos no passado e todo o trabalho do BC é para gerar segurança ao mercado.

Zenaro, da B3, esclarece que a bolsa está oferecendo hoje somente o serviço de registro dos papéis e não o de monitoramento das duplicatas, como faz a Cerc. Dessa forma, a duplicata que chegar à B3 já terá passado por esse monitoramento sobre suas condições, feito por outra empresa especializada. "Quando chegar aqui ela vai passar por outro crivo, que será o nosso processo de registro", resume o executivo da bolsa. Ele exemplifica com uma cédula do produtor rural, em que não é a bolsa, mas sim um agente de registro, que faz a verificação sobre a quantidade de sacas de café que hipoteticamente vão lastrear essa operação.

Quanto à interoperabilidade, Zenaro destaca que depositar o papel numa registradora ainda não é obrigatório. Logo, no cenário atual, o mesmo papel pode estar numa registradora e no cartório. "Não se está colocando um problema que já não exista hoje", afirma.

A disputa pelo mercado faz todo o sentido, pela possibilidade de negócios que ele desenha. A Cerc estima que essas operações industriais que geram duplicatas somem hoje R$ 4 trilhões. E apenas cerca de R$ 80 bilhões são utilizados em operações no mercado. "Esse mercado só não aconteceu ainda porque hoje, no funcionamento cartular, a garantia é muito frágil", afirma Fontes.

https://www.valor.com.br/financas/6429809/b3-comeca-fazer-registro-de-duplicatas