Jurídico

Constrição patrimonial em execução fiscal e recuperação judicial

Por conta da crise econômica e de saúde pública provocada pela pandemia da Covid-19, inúmeras empresas estão passando por dificuldades econômico-financeiras e, por via de consequência, ficaram incapacitadas de honrar seus compromissos, em especial aqueles de natureza tributária.

Quando esse cenário traumático acomete as empresas, é muito comum elas se socorrerem ao instituto da recuperação judicial, instrumento jurídico regulado pela Lei nº 11.101/2005 e utilizado para dar fôlego e soerguer a atividade empresarial.

No entanto, por expressa previsão legal (artigo 187 do Código Tributário Nacional e artigo 29 da Lei de Execuções Fiscais), tal instrumento não tem o condão de negociar ou suspender a exigibilidade dos créditos tributários, visto ser um direito indisponível, alcançando tão somente dívidas privadas. Posto isso, o passivo tributário das empresas não faz parte do plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral de credores.

Isso não significa, porém, que a empresa recuperanda, para suspender a exigibilidade do débito tributário e da execução fiscal (artigo 151, VI, do CTN), não possa fazer uso de outros programas vantajosos de pagamento, inclusive específicos para empresas em recuperação judicial, como a transação tributária e o parcelamento. A diferença, contudo, está no fato de que tais programas estão previstos em lei e não decorrem de um plano de recuperação judicial fruto de uma negociação entre o contribuinte e a Fazenda Pública.

Desse modo, a Fazenda Pública, credora fiscal, continuará a exigir dívidas tributárias inadimplidas por meio de execuções fiscais, independentemente de o contribuinte ter pleiteado a recuperação judicial ou não, hipótese em que o juízo da execução, ao constatar a ausência de pagamento ou de garantia da dívida, poderá determinar a constrição de bens do contribuinte para satisfação do débito.

Ocorre que, como se pode imaginar, o prosseguimento das execuções fiscais pode implicar na inviabilização do próprio plano de recuperação judicial das empresas, a depender do objeto da constrição, além de desarranjar a ordem de credores que já teriam habilitado os créditos perante o juízo universal.

A exemplo disso, imaginemos a situação em que a recuperanda, além de outras dívidas, disponha de débitos trabalhistas, os quais, por conta do artigo 186 do Código Tributário Nacional, têm preferência aos créditos tributários. Ao se permitir a continuidade da penhora de bens na execução fiscal, isso significará a paralisação de todo o plano de recuperação judicial aprovado, de modo a violar a ordem de preferência prevista pela própria legislação.

Por conta disso, inaugurou-se a discussão jurídica sobre se o juiz da execução fiscal teria, além de competência, a melhor condição para proceder a constrição de bens sem prejudicar o processo de soerguimento da empresa recuperanda.

Em 2018, essa celeuma foi levada ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento, em sede de recurso repetitivo (Tema nº 987) e com efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário, sobre "a possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária", com a determinação de suspensão de tramitação de todos os casos que tenham a mesma discussão.

Decerto, tal suspensão, no início, foi bastante comemorada pelas empresas em recuperação judicial, pois sabia-se que, enquanto perdurar o efeito suspensivo, as dívidas objeto de execuções fiscais seriam mais facilmente administradas devido à sua baixa capacidade de gerar prejuízo, já que mitigado o risco de o juiz da execução fiscal determinar a tão indesejada penhora sobre ativos financeiros e bloqueio de bens da empresa.

No entanto, ao fim de 2020, por meio da Lei nº 14.112/2020, foram trazidas diversas novidades na Lei de Recuperação Judicial, em especial no tratamento de dívidas fiscais para empresas em recuperação judicial.

Uma dessas atualizações foi o texto inserido no artigo 6, §7º-B, da Lei nº 11.101/2005, que dispôs sobre a possibilidade de adoção de atos de constrição patrimonial em face da empresa em recuperação judicial quando não houver hipótese de suspensão da execução fiscal ou da própria exigibilidade do crédito tributário, sendo do juízo universal a competência para, em cooperação com o juízo da execução fiscal, avaliar e substituir a constrição que recaia sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial e, portanto, do cumprimento do plano de recuperação.

Como se pode notar, a instituição da cooperação jurisdicional e a possibilidade da substituição da constrição foi uma tentativa do legislador de sanar a problemática fixada pelo STJ no Tema nº 987, de maneira que, de agora em diante, não seja mais obstada a continuidade da execução fiscal, que é de interesse público, e prejudicado o plano de preservação da empresa.

Desse modo, em decorrência da referida inovação legislativa, o STJ foi instado a se manifestar sobre a eventual perda do objeto do Tema nº 987. Em 28 de junho deste ano, o tribunal superior, por sua vez, entendeu que o legislador resolveu a descoordenação entre a carência de aptidão do juiz da execução fiscal em determinar a constrição de bens e a interrupção do plano de recuperação judicial aprovado para a empresa, uma vez que, agora, os dois juízos atuarão de forma cooperada, de modo a garantir que o crédito fiscal seja satisfeito e o processo de recuperação da empresa seja mantido.

Assim sendo, com a perda do objeto, foi determinado o cancelamento do Tema nº 987, o que implicou no levantamento da suspensão nacional de todos os processos que versam sobre o tema, revelando-se um grande revés aos contribuintes, dado que, a partir de então, o risco de penhora e bloqueio no bojo das execuções fiscais voltou a existir.

Importa ressaltar, no entanto, que a atualização da Lei de Recuperação Judicial e a desafetação no Tema nº 987 estão longe de ser a pá de cal de toda a controvérsia.

Isso porque, recentemente, o STJ deferiu liminar em dois conflitos de competência determinando a suspensão da execução fiscal até que seja definido pelo juízo da recuperação judicial a "qualidade do bem de capital constrito" e implementada a cooperação jurisdicional prevista pela nova sistemática legal (Conflito de Competência nº 181.431/SP e nº 181.438/MG).

Significa dizer que, não obstante o levantamento da suspensão de todos os processos que versavam sobre o Tema nº 987, alguns contribuintes têm conseguido no STJ a suspensão da execução fiscal ao argumento de que não há uma definição clara sobre o que é um bem de capital essencial, ficando a critério do juízo universal a sua definição antes de qualquer ato constritivo na execução fiscal, e de que não foram implementados os procedimentos para a cooperação entre o juiz universal e o da execução.

Apenas a título exemplificativo, para ilustrar a dificuldade que emerge em função da ausência de uma definição clara, sugere-se a seguinte indagação: seria a penhora online um bem de capital essencial?

Se analisarmos a jurisprudência do STJ (REsp 1.758.746/GO), veremos que o tribunal tem o entendimento de que dinheiro não é bem de capital. E se não o é, não haveria de se cogitar, de acordo com a novel legislação, a submissão da constrição à prévia deliberação do juízo da recuperação.

Porém, como se sabe, a depender do montante a ser penhorado pelo juiz da execução fiscal, a constrição de dinheiro da empresa pode ser fatal para a continuidade da empresa e inviabilizar todo o plano de recuperação judicial, voltando-se para o problema original que resultou no Tema nº 987, cancelado pelo STJ.

Assim sendo, até que essas novas questões sejam resolvidas, seja pelo Legislativo ou pelo Judiciário, é possível que esse impasse perdure por mais um bom tempo, abarrotando o Judiciário com novas ações e recursos e diminuindo a eficiência da prestação jurisdicional.

Em resumo, além de infindável a controvérsia, é certo que as empresas em recuperação judicial estão, a qualquer momento, sujeitas a atos de constrição caso não garantam a dívida objeto da execução fiscal. Essa situação torna ainda mais indispensável a adoção de uma gestão fiscal estratégica que vise a administrar os passivos tributários para que, em sendo o caso, a recuperanda faça uso das opções existentes para suspender a exigibilidade dos débitos, tais como o parcelamento ou a transação tributária, ou então, garanta a dívida para discutir, via embargos à execução fiscal, a juridicidade do crédito exigido pela administração tributária.

Raphael Sergio Aguiar é advogado tributarista do escritório Sartori Sociedade de Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), professor do curso de pós-graduação em Direito Tributário da PUC-Campinas e associado ao Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

Marcelo Sartori é sócio responsável pela coordenação geral do escritório Sartori Sociedade de Advogados, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Administração de Empresas pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).

Frank Koji Migiyama é master Business Administration pela FGV, engenheiro formado pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), conselheiro de administração pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e sócio fundador da empresa de consultoria empresarial FKConsulting.PRO, especializada em Turnaround, Reestruturação, Recuperação Judicial, M&A, IPO e Inovação.

Revista Consultor Jurídico, 12 de setembro de 2021, 13h13

https://www.conjur.com.br/2021-set-12/opiniao-constricao-patrimonial-execucao-fiscal-rj