O mercado de crédito privado tem ganhado relevância com a crescente alta de juros, enquanto as cotações das ações do índice Bovespa não consolidam uma alta no curto prazo. Neste texto, procuro descrever algumas inovações e tendências recentes no tocante à originação e negociação de direitos creditórios.
Fintechs de crédito ampliam a originação
As fintechs de crédito – sociedades de crédito direto (SCD) e sociedades de empréstimo entre pessoas (SEP), introduzidas pela Resolução CMN nº 4.656/2018 e hoje reguladas pela Resolução CMN nº 5.050/2022 – aumentaram o rol de instituições capazes de ofertar crédito, tais como as cooperativas de crédito, sociedades de crédito, empréstimo e financiamento (as “financeiras”), sociedades de crédito ao microempreendedor e empresas de pequeno porte, as empresas simples de crédito e, ainda, as sociedades de fomento mercantil (factoring), estas últimas não reguladas pelo Banco Central.
A SCD pode apenas emprestar capital próprio, enquanto a SEP realiza a intermediação de empréstimos, sem se coobrigar ou utilizar recursos próprios. Tanto a SCD como a SEP devem ser constituídas sob a forma de sociedade anônima e ter um patrimônio líquido mínimo de R$ 1 milhão.
O processo de autorização de uma fintech de crédito pode levar cerca de um ano, mas a estrutura é mais flexível em comparação com os demais tipos de instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central, razão pela qual um número crescente de empresas tem constituído SCDs para criar um “braço” financeiro.
Uma alternativa à constituição de uma SCD é a contratação de uma solução de banking as a service (BaaS) que já ofereça uma plataforma autorizada pelo Banco Central a ofertar crédito, tais como Bankly, Zoop, QI Tech e Dock, dentre outras. Em setembro de 2024, havia 124 SCDs e 12 SEPs autorizadas a funcionar pelo Banco Central, em contraste com as 70 financeiras e 789 cooperativas de crédito.
É importante frisar que o termo “fintech” é mais amplo e abrange empresas que inovam em soluções de câmbio, seguros e, principalmente, instituições de pagamento, não se restringindo às SCD e SEP. Também podem ser incluídas no conjunto de fintechs as empresas da criptoeconomia, tais como exchanges, custodiantes e tokenizadoras.
De acordo com a pesquisa Fintechs de Crédito Digital, realizada pela PwC e a Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), o volume de crédito ofertado nesta modalidade foi de R$ 21,1 bilhões em 2023 (um aumento de 51% com relação a 2022), 58% das empresas estão agora consolidadas, com faturamento anual ou investimento total acima de R$ 20 milhões e 35% das fintechs têm mais de 150 funcionários.
Afastamento da lei da usura
Uma inovação legislativa importante foi trazida pela Lei nº 14.905/2024, afastando o limite da taxa de juros previsto no Decreto nº 22.626/1933 (Lei da Usura) para uma série de hipóteses:
Dessa forma, o aumento da segurança jurídica no tocante à taxa de juros aplicável favorece os originadores de crédito, com a ressalva acerca da necessidade de autorização pelo Banco Central conforme a intepretação do que seria exercício de atividade privativa de instituição financeira, nos termos do artigo 17 da Lei nº 4.594/1964.
Mercado de capitais como alternativa aos bancos
No âmbito do mercado de capitais, a aquisição de recebíveis diversos por fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) têm representado uma alternativa interessante para, de um lado, investidores e, de outro, empresas que desejam financiamento por uma via alternativa à dos bancos.
Até o advento da Resolução CVM nº 175/2022, os FIDCs só poderiam ser ofertados a investidores qualificados, isto é, aqueles com patrimônio disponível para investimentos superior a R$ 1 milhão. Com a nova norma, observados alguns requisitos, FIDCs poderão ser ofertados ao varejo.
Dentre os requisitos, destaco (1) a impossibilidade de o público em geral adquirir cotas subordinadas (mais expostas ao risco de inadimplência); (2) a previsão, no regulamento, de um cronograma para amortização de cotas ou distribuição de rendimentos; e (3) a subclasse de cotas seniores deve ser objeto de classificação de risco por agência classificadora de risco autorizada pela CVM. Há requisitos adicionais relativos ao período entre o pedido de resgate e seu pagamento e quanto à inadmissibilidade de certos tipos de direitos creditórios.
O FIC FIDC Solis Capital Antares Pioneiro foi o primeiro FIDC para varejo lançado em junho deste ano e, conforme dados do Portal Anbima Data, seu patrimônio líquido em 7/10 era de R$ 76,9 milhões com 1.212 cotistas. Outro fundo semelhante, lançado em setembro, é o Western Asset High Grade One FIC FIDC, que em 7/10 tinha patrimônio líquido de R$ 162 milhões e 3.800 cotistas. Ambos os fundos mencionados são administrados pelo BTG.
De acordo com o Boletim de Fundos de Investimento da Anbima, até agosto de 2024, a captação líquida dos FIDCs foi de R$ 83 bilhões e o patrimônio líquido total dos FIDCs chegou a R$ 535,6 bilhões.
A depender do volume da operação, a estruturação de um FIDC pode ser mais célere do que a constituição de uma SCD. Por outro lado, a necessidade de governança mais robusta e a complexidade dos ativos em carteira resultam em custos operacionais relevantes, envolvendo diversos participantes necessários para viabilizar a estrutura de um FIDC.
Securitização e tokenização
Por fim, as operações de securitização são uma alternativa à captação de recursos para o financiamento de empresas via aquisição de direitos creditórios. Os certificados de recebíveis do agronegócio (CRA) e imobiliários (CRI) já são conhecidos de boa parte dos investidores, em virtude da isenção de imposto de renda. Com o advento da Lei nº 14.430/2022 (Marco Legal da Securitização) e a modernização da regulação infralegal com a Resolução CVM nº 60/2022, o arcabouço normativo tornou-se mais robusto para a estruturação desse tipo de operação.
Na securitização, em vez de ser constituído um condomínio cujas cotas são ofertadas publicamente (como no caso dos FIDCs), a intermediação é realizada por uma companhia securitizadora, autorizada pela CVM, que oferta certificados de recebíveis lastreados nos direitos creditórios. Até agosto de 2024, foram emitidos R$ 38,9 bilhões em CRI, R$ 27 bilhões em CRA e R$ 460 milhões em certificados de recebíveis diversos (em comparação, foram captados R$ 43 bilhões em ofertas de cotas de FIDCs).
A governança nas operações de securitização também envolve vários prestadores de serviço de infraestrutura, além da eventual constituição de um regime fiduciário para segregar os recursos envolvidos na operação.
Atualmente, algumas empresas têm ofertado produtos em operações muito semelhantes à securitização, emitindo ativos virtuais registrados em redes descentralizadas, são os chamados tokens de recebíveis ou “renda fixa digital”. Diante da incerteza quanto à qualificação destes tokens como valores mobiliários, eles têm sido oferecidos ou por companhias securitizadoras ou por meio de plataformas eletrônicas de investimento participativo (plataformas de crowdfudning), reguladas pela Resolução CVM nº 88/2022.
Considerações finais
Além da cessão a FIDCs e securitizadoras, os direitos creditórios também podem ser utilizados para garantir a emissão de notas comerciais ou debêntures. Assim, há uma ampla gama de alternativas para formalizar o financiamento da empresa com base nesses direitos sem recorrer diretamente aos bancos. Adicionalmente, as empresas podem obter crédito por instituições não bancárias, com potencial aprimoramento de usuário, redução de burocracia e maior celeridade na aprovação e liberação dos recursos.
Desse modo, espero ter ilustrado como a digitalização dos canais de distribuição de produtos e serviços financeiros tem ajudado a reduzir o protagonismo dos bancos na alocação de recursos no sistema econômico.
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Isac Costa
é advogado e professor do Ibmec, do Insper e da LegalBlocks, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.
https://www.conjur.com.br/2024-out-09/em-busca-de-credito-fora-dos-bancos/
Fintechs de crédito ampliam a originação
As fintechs de crédito – sociedades de crédito direto (SCD) e sociedades de empréstimo entre pessoas (SEP), introduzidas pela Resolução CMN nº 4.656/2018 e hoje reguladas pela Resolução CMN nº 5.050/2022 – aumentaram o rol de instituições capazes de ofertar crédito, tais como as cooperativas de crédito, sociedades de crédito, empréstimo e financiamento (as “financeiras”), sociedades de crédito ao microempreendedor e empresas de pequeno porte, as empresas simples de crédito e, ainda, as sociedades de fomento mercantil (factoring), estas últimas não reguladas pelo Banco Central.
A SCD pode apenas emprestar capital próprio, enquanto a SEP realiza a intermediação de empréstimos, sem se coobrigar ou utilizar recursos próprios. Tanto a SCD como a SEP devem ser constituídas sob a forma de sociedade anônima e ter um patrimônio líquido mínimo de R$ 1 milhão.
O processo de autorização de uma fintech de crédito pode levar cerca de um ano, mas a estrutura é mais flexível em comparação com os demais tipos de instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central, razão pela qual um número crescente de empresas tem constituído SCDs para criar um “braço” financeiro.
Uma alternativa à constituição de uma SCD é a contratação de uma solução de banking as a service (BaaS) que já ofereça uma plataforma autorizada pelo Banco Central a ofertar crédito, tais como Bankly, Zoop, QI Tech e Dock, dentre outras. Em setembro de 2024, havia 124 SCDs e 12 SEPs autorizadas a funcionar pelo Banco Central, em contraste com as 70 financeiras e 789 cooperativas de crédito.
É importante frisar que o termo “fintech” é mais amplo e abrange empresas que inovam em soluções de câmbio, seguros e, principalmente, instituições de pagamento, não se restringindo às SCD e SEP. Também podem ser incluídas no conjunto de fintechs as empresas da criptoeconomia, tais como exchanges, custodiantes e tokenizadoras.
De acordo com a pesquisa Fintechs de Crédito Digital, realizada pela PwC e a Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), o volume de crédito ofertado nesta modalidade foi de R$ 21,1 bilhões em 2023 (um aumento de 51% com relação a 2022), 58% das empresas estão agora consolidadas, com faturamento anual ou investimento total acima de R$ 20 milhões e 35% das fintechs têm mais de 150 funcionários.
Afastamento da lei da usura
Uma inovação legislativa importante foi trazida pela Lei nº 14.905/2024, afastando o limite da taxa de juros previsto no Decreto nº 22.626/1933 (Lei da Usura) para uma série de hipóteses:
Dessa forma, o aumento da segurança jurídica no tocante à taxa de juros aplicável favorece os originadores de crédito, com a ressalva acerca da necessidade de autorização pelo Banco Central conforme a intepretação do que seria exercício de atividade privativa de instituição financeira, nos termos do artigo 17 da Lei nº 4.594/1964.
Mercado de capitais como alternativa aos bancos
No âmbito do mercado de capitais, a aquisição de recebíveis diversos por fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) têm representado uma alternativa interessante para, de um lado, investidores e, de outro, empresas que desejam financiamento por uma via alternativa à dos bancos.
Até o advento da Resolução CVM nº 175/2022, os FIDCs só poderiam ser ofertados a investidores qualificados, isto é, aqueles com patrimônio disponível para investimentos superior a R$ 1 milhão. Com a nova norma, observados alguns requisitos, FIDCs poderão ser ofertados ao varejo.
Dentre os requisitos, destaco (1) a impossibilidade de o público em geral adquirir cotas subordinadas (mais expostas ao risco de inadimplência); (2) a previsão, no regulamento, de um cronograma para amortização de cotas ou distribuição de rendimentos; e (3) a subclasse de cotas seniores deve ser objeto de classificação de risco por agência classificadora de risco autorizada pela CVM. Há requisitos adicionais relativos ao período entre o pedido de resgate e seu pagamento e quanto à inadmissibilidade de certos tipos de direitos creditórios.
O FIC FIDC Solis Capital Antares Pioneiro foi o primeiro FIDC para varejo lançado em junho deste ano e, conforme dados do Portal Anbima Data, seu patrimônio líquido em 7/10 era de R$ 76,9 milhões com 1.212 cotistas. Outro fundo semelhante, lançado em setembro, é o Western Asset High Grade One FIC FIDC, que em 7/10 tinha patrimônio líquido de R$ 162 milhões e 3.800 cotistas. Ambos os fundos mencionados são administrados pelo BTG.
De acordo com o Boletim de Fundos de Investimento da Anbima, até agosto de 2024, a captação líquida dos FIDCs foi de R$ 83 bilhões e o patrimônio líquido total dos FIDCs chegou a R$ 535,6 bilhões.
A depender do volume da operação, a estruturação de um FIDC pode ser mais célere do que a constituição de uma SCD. Por outro lado, a necessidade de governança mais robusta e a complexidade dos ativos em carteira resultam em custos operacionais relevantes, envolvendo diversos participantes necessários para viabilizar a estrutura de um FIDC.
Securitização e tokenização
Por fim, as operações de securitização são uma alternativa à captação de recursos para o financiamento de empresas via aquisição de direitos creditórios. Os certificados de recebíveis do agronegócio (CRA) e imobiliários (CRI) já são conhecidos de boa parte dos investidores, em virtude da isenção de imposto de renda. Com o advento da Lei nº 14.430/2022 (Marco Legal da Securitização) e a modernização da regulação infralegal com a Resolução CVM nº 60/2022, o arcabouço normativo tornou-se mais robusto para a estruturação desse tipo de operação.
Na securitização, em vez de ser constituído um condomínio cujas cotas são ofertadas publicamente (como no caso dos FIDCs), a intermediação é realizada por uma companhia securitizadora, autorizada pela CVM, que oferta certificados de recebíveis lastreados nos direitos creditórios. Até agosto de 2024, foram emitidos R$ 38,9 bilhões em CRI, R$ 27 bilhões em CRA e R$ 460 milhões em certificados de recebíveis diversos (em comparação, foram captados R$ 43 bilhões em ofertas de cotas de FIDCs).
A governança nas operações de securitização também envolve vários prestadores de serviço de infraestrutura, além da eventual constituição de um regime fiduciário para segregar os recursos envolvidos na operação.
Atualmente, algumas empresas têm ofertado produtos em operações muito semelhantes à securitização, emitindo ativos virtuais registrados em redes descentralizadas, são os chamados tokens de recebíveis ou “renda fixa digital”. Diante da incerteza quanto à qualificação destes tokens como valores mobiliários, eles têm sido oferecidos ou por companhias securitizadoras ou por meio de plataformas eletrônicas de investimento participativo (plataformas de crowdfudning), reguladas pela Resolução CVM nº 88/2022.
Considerações finais
Além da cessão a FIDCs e securitizadoras, os direitos creditórios também podem ser utilizados para garantir a emissão de notas comerciais ou debêntures. Assim, há uma ampla gama de alternativas para formalizar o financiamento da empresa com base nesses direitos sem recorrer diretamente aos bancos. Adicionalmente, as empresas podem obter crédito por instituições não bancárias, com potencial aprimoramento de usuário, redução de burocracia e maior celeridade na aprovação e liberação dos recursos.
Desse modo, espero ter ilustrado como a digitalização dos canais de distribuição de produtos e serviços financeiros tem ajudado a reduzir o protagonismo dos bancos na alocação de recursos no sistema econômico.
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Isac Costa
é advogado e professor do Ibmec, do Insper e da LegalBlocks, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.
https://www.conjur.com.br/2024-out-09/em-busca-de-credito-fora-dos-bancos/