Posso executar cheque cedido que foi sustado por desacordo comercial

O cheque, ao contrário da duplicata, não é um título causal e, portanto, não se encontra atrelado ao negócio jurídico subjacente do qual se originou. Quem o emite, assume a responsabilidade de liquidá-lo quando de sua apresentação, a não ser que reste comprovada a inexigibilidade da cobrança por algum fato que macule a cédula.

É cediço que as disposições contratuais fixadas pelas partes em negócio jurídico, a despeito da repercussão social da avença frente a terceiros - função social do contrato - tal situação relaciona-se somente às partes, não podendo ser opostas a terceiros de boa-fé e que sequer tinham conhecimento. 

Neste ponto, não há que se falar que o conhecimento notório, em relação a falta de crédito, de alguém seja justificativa para alegação de que as pessoas devessem tomar conhecimento que títulos não poderiam ser recebidos como pagamento de outras avenças, ainda mais com relação ao cheque.

Diante disso, há que se considerar, outrotanto, a característica essencial da circularidade do título de crédito (cheque). Quem o emite, assume a responsabilidade de liquidá-lo quando de sua apresentação, a não ser que reste comprovada a inexigibilidade da cobrança por algum fato que agrida a cártula.

Conforme previsto na Lei 7.357/85, o cheque é pagável à vista que pode ser transferido por endosso, com base no art. 17, da mesma lei que diz:

O cheque pagável a pessoa nomeada, com ou sem cláusula expressa à ordem, é transmissível por via de endosso.

Nesta seara, o endossatário passa a ter todos os direitos sobre o título, sendo que esse direito não pode ser prejudicado por problemas ocorridos na relação entre o emitente do cheque e o beneficiário/endossante, ou seja, o terceiro (endossatário) tem o direito de receber mesmo que haja problemas entre o emitente e o endossante.

Quando o cheque é endossado, a causa debendi se abstrai, ou seja, a causa que deu origem ao cheque é automaticamente apagada em relação ao terceiro endossatário, já que o terceiro do boa-fé nada tem a ver com relação ao que deu causa à origem do referido título de crédito.

Diuturnamente, assistimos casos nos quais o emitente do cheque e o beneficiário não se entenderam comercialmente, ocorrendo o famoso desacordo comercial, vindo o emitente a cancelar/sustar o cheque.

Essa prática é aceita quando o cheque ainda está na posse do beneficiário. Não obstante, quando o cheque tiver sido endossado à terceiro, esse terceiro não poderá ter oposto contra si o mencionado desacordo comercial.

Há a nomenclatura "Não Endossável" ou "Não à Ordem" escrita atrás do cheque que impede que seja endossado, e se o beneficiário passar à terceiro, o emitente poderá opor contra este a causa debendi, pois, se o terceiro aceitou o cheque com a cláusula "Não endossável" assumiu o risco de ter oposta contra si o mencionado desacerto.

O §1° do artigo 17 retro mencionado, diz que:

O cheque pagável a pessoa nomeada, com a cláusula não à ordem, ou outra equivalente, só é transmissível pela forma e com os efeitos de cessão.

Confira-se que os efeitos de cessão são os que permitem que o emitente possa alegar contra o endossatário os motivos do desacordo comercial.

Entretanto, se não há a nomenclatura "Não Endossável" ou "Não à Ordem" escrita atrás do cheque, o referido título, após ser endossado ao Cessionário, fará com que o emitente arque com o pagamento do cheque que está nas mãos do terceiro endossatário e, caso tenha vício na relação, o emitente terá que agir com regresso contra o beneficiário que deu causa ao desacordo, se assim considerar, e for o caso.

Aquele que emite um cheque, o faz com as características de uma ordem de pagamento à vista, conforme artigo 32 da lei do cheque, já citada, assim, o emitente de cheque o faz sob sua própria responsabilidade, aceitando os compromissos decorrentes desta emissão.

A propósito, ilustramos esta missiva com o magnífico entendimento esposado pelo STJ, no sentido de que, em não comprovada a má-fé do terceiro endossatário, fica vedada a oponibilidade das exceções pessoais relacionadas ao emitente do título e ao endossante, segue:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. TÍTULOS DE CRÉDITO. CHEQUE. TRANSMISSÃO A TERCEIRO VIA ENDOSSO.AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DE MÁ-FÉ. INOPONIBILIDADE DE EXCEÇÕES PESSOAIS. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que as exceções pessoais não são oponíveis a terceiro de boa-fé, salvo se comprovada sua má-fé.
2. No REsp 1.231.856/PR, a Quarta Turma desta Corte Superior reafirmou o entendimento de que a relação jurídica subjacente à emissão do cheque não pode ser oponível ao endossatário que se presume terceiro de boa-fé, ao tomar a cártula por meio do endosso, ressalvada a possibilidade de confirmação da má-fé por parte deste.
3. Não havendo de se cogitar má-fé do terceiro (endossatário), é vedada a oponibilidade de exceções pessoais relativas ao emitente do título e ao endossante, uma vez que a execução da cártula, no caso dos autos, constituiu simples exercício regular de direito por parte do endossatário.
4. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp 861.575/MT, Relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 21/03/2017, DJe 10/04/2017.)

Felipe do Canto Zago

Felipe do Canto Zago

Advogado, graduou-se pela  Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Desde os primeiros anos de prática processual, empreendeu em escritórios de advocacia próprios, tornando-se profissional reconhecido no Mercado de Capitais (FIDCs e Securitizadoras) e Direito Empresarial, destinando anos à vida à academia, onde leciona e possui profícua produção.
 
Mestre em Direito na área de Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado pela PUCRS, formou-se Pós Graduado em Direito Empresarial pela mesma universidade. Possui, também, extensão em Direito Civil, Processo Civil, Direito Administrativo, Direito do Consumidor, Direito Tributário no IDC, Direito Bancário pela FGVRJ, Direito Imobiliário na AJURIS e Direito Societário na UNISINOS.
 
Professor Convidado (2013-2017) da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, bem como da Pós-Graduação em Direito Contratual, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (desde 2018 até o momento).Possui diversos estudos jurídicos publicados em revistas técnicas, artigos jurídicos e jornais de grande circulação; é também palestrante em Congressos, Cursos e Simpósios no setor de compra de ativos mobiliários.